"Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, é também lícito resistir ao que agride as almas ou que perturba a ordem civil, ou, acima de tudo, que tenta destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe, não fazendo o que ele ordena e impedindo que as suas ordens sejam executadas; não é lícito, porém, julgá-lo, castigá-lo ou depô-lo, porque estes actos competem a um superior."
(De Romano Pontifice. II.29.)
Alguns usam esta citação, tirada do longo tratado de Belarmino que defende o poder do papa, para condenar o "sedevacantismo" — a tese que sustenta que a hierarquia pós-conciliar, incluindo os papas pós-conciliares, perderam seus cargos ipso facto por [suas] heresias. Eu já havia visto isso sendo empregado desta maneira não menos que três vezes nos últimos quatro meses - uma vez no "The Remnant" (Edwin Faust, "Signa Temporum", 15 de abril de 1994, 8), uma vez no "The Catholic" (Michael Farrell, Carta ao Editor, "resposta simples para os Sedevacantistas", Abril de 1994, 10), e uma vez por um padre da Fraternidade São Pio X.
Os Católicos tradicionais que rejeitam a Missa Nova e as mudanças pós-Vaticano II, mas que ainda sustentam que os papas pós-conciliares exercem o cargo legitimamente - um grupo que inclui a FSSPX, Michael Davies, e muitos outros - também vêem nesta passagem algum tipo de justificação para reconhecer alguém como papa, mas rejeitar seus comandos.
A citação tem sido citada várias e várias vezes para apoiar tais posições, sem dúvida, de completa boa fé. [Mas] infelizmente, ela foi tirada do contexto e completamente mal aplicada. Em seu contexto original, a declaração de Belarmino não condena o princípio por trás da posição sedevacantista, e nem justifica resistir as leis promulgadas por um papa validamente eleito.
E mais, no capítulo imediatamente após a declaração citada, Belarmino defende a tese de que um papa herético perde automaticamente seu ofício.
De passagem, devemos primeiro observar como é uma estúpida calúnia citar esta passagem e sugerir que os sedevacantistas "julguem", "punam" ou "deponham" o papa. Eles não fazem nada disso. Eles apenas aplicam às palavras e atos dos papas pós-conciliares um princípio enunciado por muitos grandes canonistas e teólogos, incluindo (como veremos) São Roberto Belarmino: um papa herético "depõe" a si mesmo.
I. O significado da passagem tem sido distorcido ao ser colocado fora de seu contexto próprio.
A passagem citada é de um longo capítulo aonde Belarmino se dedica a refutar nove argumentos defendendo a posição de que o papa está sujeito ao poder secular (Imperador, Rei, etc.) e um Concílio Ecumênico (a heresia do conciliarismo).
O contexto geral é, portanto, uma discussão sobre o poder do Estado frente-a-frente ao papa. Obviamente, isso não tem nada a ver com as questões que os sedevacantistas levantaram.
No seu contexto particular, a citação que eles usam frequentemente, é parte de refutação de Belarmino no seguinte argumento:
Argumento 7. Qualquer pessoa pode matar o papa se ela for injustamente atacada por ele. Portanto, é será permitido, ainda mais, que reis ou um concílio deponham o papa se ele perturba o estado, ou se ele tenta matar almas por seu mau exemplo.
Belarmino responde:
Eu respondo, negando a segunda parte do argumento. Para resistir aquele que ataca e defender a si mesmo, nenhuma autoridade é necessária, nem é necessário que aquele que é atacado seja o juiz e superior daquele que ataca. Autoridade é necessária, no entanto, para julgar e punir.
É somente aí, então, que Belarmino afirma:
Assim como é lícito resistir ao Pontífice que agride o corpo, é também lícito resistir ao que agride as almas ou que perturba a ordem civil, ou, acima de tudo, que tenta destruir a Igreja. Digo que é lícito resistir-lhe, não fazendo o que ele ordena e impedindo que as suas ordens sejam executadas; não é lícito, porém, julgá-lo, castigá-lo ou depô-lo, porque estes actos competem a um superior.
(De Romano Pontifice. II.29.)
A citação, então, não é uma condenação do "sedevacantismo." Belarmino, ao invés disso, está a discutir o curso de ação que pode legitimamente ser tomado contra um papa que perturba a ordem política ou "mata almas por seu mau exemplo." Um rei ou um concílio não pode depor tal papa, Belarmino argumenta, porque eles não são seus superiores - mas eles podem resistir a ele.
Esta citação também não ajuda os católicos tradicionais que reconhecem João Paulo II como papa, mas que rejeitam sua Missa e ignoraram suas leis.
Em primeiro lugar, a passagem justifica a resistência por reis e concílios. Ela não diz que os bispos individuais, sacerdotes e leigos possuem esse direito de resistir ao papa e ignorar seus comandos por conta própria- muito menos que eles possam erguer locais de culto em oposição aos bispos diocesanos que um papa legalmente nomeou.
Em segundo lugar, observe as causas precisas para a resistência no caso que Belarmino está discutindo: Perturbação do estado ou mau exemplo dado. Estes, obviamente, não são a mesma coisa que a legislação litúrgica papal, leis disciplinares ou pronunciamentos doutrinais em que um indivíduo possa, de alguma forma, considerar prejudicial. Belarmino dificilmente aprovaria ou daria carta branca ao descaso de 30 anos [já viraram 50 anos] as directivas do homem que eles alegam reconhecer como ocupantes legítimos do ofício papal e os Vigários de Cristo na terra.
Em suma, a passagem não condena o sedevacantismo e nem apoia os tradicionalistas, como os adeptos da Fraternidade São Pio X.
II. Belarmino ensina que um papa herético perde automaticamente seu ofício.
No capítulo a seguir de onde tal passagem é citada, São Roberto Belarmino trata sobre a seguinte pergunta: "Se um papa herege pode ser deposto." Note-se, em primeiro lugar, que a sua pergunta pressupõe que um papa pode, de facto, tornar-se um herege.
Após uma longa discussão de várias opiniões dadas por teólogos sobre esta questão, Belarmino diz:
A quinta opinião é, portanto, a verdadeira. Um papa que é um herege manifesto automaticamente (por si só) deixa de ser papa e cabeça, assim como ele deixa automaticamente de ser um cristão e membro da Igreja. Portanto, ele pode ser julgado e punido pela Igreja. Este é o ensinamento de todos os Pais da Igreja (ancient Fathers) que ensinam que os hereges manifestos perdem imediatamente toda jurisdição. (De Romano Pontifice. II.30. Minha ênfase)
Belarmino, em seguida, cita passagens de Cipriano, Driedonus e Melchior Cano em apoio a sua posição. A base para este ensinamento, finalmente ele diz, é que um herege manifesto não é de modo algum um membro da Igreja - nem de sua alma e nem de seu corpo, nem por intermédio de uma união interna ou externa.
Assim, os escritos de Belarmino, longe de condenar a posição sedevacantista, fornece o princípio central em que ela se baseia — que um papa que se torna um herege manifesto perde automaticamente seu ofício e jurisdição.
O ensino de Belarmino não é uma opinião isolada também não. Ele nos assegura que é o ensinamento de todos os antigos Pais da Igreja (ancient Fathers). E o princípio que ele enunciou foi reiterado por teólogos e canonistas até o século 20, incluindo os dos comentadores do Código de Direito Canônico de 1983 promulgado pelo próprio João Paulo II.
* * * * *
Portanto, aqueles que reconhecem João Paulo II como papa [mas] ignorando todos os seus mandamentos, não podem ter qualquer consolo na passagem de Belarmino.
É a posição sedevacantista, antes de tudo, que é apoiada pelo ensinamento do grande Roberto Belarmino: um papa legítimo deve ser obedecido; um papa herético perde seu ofício.
Padre Anthony Cekada (Sacerdotium 12, Verão 1994).
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